terça-feira, 20 de setembro de 2016

3 525 - Os incidentes de Carmona na memória do civil FA Vieira

Fernando Antunes Vieira no seu automóvel, em Carmona e à porta da 
casa onde residia. O rés do chão estava ocupado com uma delegação
da UNITA. As balas sobrevoaram o telhado, disparadas do povo Tange


João Manuel (Yá), João Sampaio, Fernando
Antunes Vieira e Fernando Martins,
jovens de Carmona, há 41 anos
Os trágicos 6 primeiros dias de Junho de 1975, em Carmona, tem aqui sido historiados pela visão e a emoção dos militares que os viveram, sentindo na pele e na alma as suas dores e os seus medos e os dramas da comunidade que defenderam, sob risco da própria vida.
A história nunca aqui (ou outro lado) será completamente feita. Muita dela já estará, de resto, esquecida na ampulheta do tempo, arrumada nas gavetas da memória, varrida dos tempos de hoje, até por não querer ser lembrada. Querer ser esquecida!
Hoje, com gosto, trazemos aqui a memória desses dias, em versão narrada por um civil - Fernando Antunes Vieira, ao tempo com 21 anos, funcionário da Câmara Municipal de Carmona.


Fernando Antunes
Vieira em foto actual
É este o seu 
depoimento:

31 de Maio, de 1975, sábado. Como sempre e depois de jantar, fui tomar a minha bica ao Café Pinguim e, a seguir, talvez tenha ido ao cinema ou dado umas voltas pela cidade. Nada fazia crer no que iria acontecer no dia seguinte e, pela meia-noite, fui-me deitar e dormir o sono dos justos, na minha casa do bairro Popular.
5 da manhã do dia 1 de Junho! Domingo! Acordei com alguns estrondos que, meio ensonado como estava, me pareceram trovoada. Mas como poderia ser trovoada, se estávamos no cacimbo?! Perscrutei melhor o som que me chegava e dei conta que era um som tipo de explosões. Afinando ainda melhor a audição, reparei que as balas passavam a assobiar por cima da minha casa.
Ora, para ouvir tais explosões perto de casa e as balas assobiarem por cima do telhado, só poderiam vir do povo chamado Tange, nas traseiras do Instituto do Café de Angola (ICA), por sua vez nas traseiras da minha casa. E era mesmo!!!
Levantei-me e chamei meu pai, que já estava a ouvir tudo e todos ficámos em alvoroço. Vivíamos na cave de uma vivenda, com entrada pelas traseiras, e o rés-do-chão estava alugado à UNITA. Penso que lhe servia de dormitório.
O dia 1 de Junho tinha marcado um baptizado no Salão de S. Francisco, os meus pais eram padrinhos e, mesmo com tiros e morteiros, lá fomos ter com o padre para baptizar a criança. Frente ao Salão, existia uma delegação da FNLA, que momentos antes fora atacada por RPG7 do MPLA, disparados do Candombe.
Saímos do baptizado e já não fomos para casa. Como estava lá instalada a UNITA e com medo de que fosse atacada, fomos para casa de amigos, no Edifício Imbondeiro.
A FNLA e a UNITA tomaram conta da cidade e os simpatizantes do MPLA refugiaram-se no BC12. A partir daí e durante pelo menos 5 dias, eram tiros a torto e a direito - atirados para o ar (uns), outros nem sei. Sei é que houve caça ao MPLA.
Nos dias seguintes, relativamente ao início do tiroteio, começaram a aparecer refugiados nativos dentro dos bairros, vindos não se sabe de onde e ocupando os quintais das casas dos brancos. Talvez se achassem mais seguros! Lá permaneceram por algum tempo, no caso do nosso quintal com homens, mulheres e crianças.
A fome começou a apertar, passado algum tempo, e o Governo do Distrito pediu ajuda alimentar a Luanda. Veio de imediato e eu, que trabalhava na Câmara Municipal, e um senhor da Administração do Concelho fomos incumbidos de distribuir os alimentos pelos refugiados. 
O tempo foi passando e os refugiados foram regressando às suas casas. A vida continuou, mas não como outrora...
FERNANDO ANTUNES VIEIRA

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