O Quitexe, em 2012. O hospital, à direita, foi requalificado
__________________ANTÓNIO C. FONSECA
Texto
Ontem, à conversa com um amigo da minha Companhia, veio a lume o que se comia e não comia no refeitório do Quitexe! Chego à conclusão que a maioria do pessoal corta na casaca do 1º. cabo Castro, o responsável pela alimentação dos praças!
Se ele, o Castro, ouvisse tais críticas, não hesitaria, nem um segundo, em atirar uma terrina de sopa para cima de quem o critica! Vale-lhes a sua ausência por terras do Tio Sam, caso contrário, se é que ainda mantém o seu vigor de então, ele poria alguma ordem nos críticos e informá-los-ia do quanto penou para colocar nas mesas o suficiente para que ninguém de lá saísse com tripa solta!
Dito assim, até pode parecer que nos queriam alimentar com fome, o que não corresponde à realidade! Mas que havia grandes truques para que isso não acontecesse, era verdade! Ele, o 1º. cabo, na prática era o responsável pelo que chegava às mesas, depois de passar pelo crivo do orçamento da CCS, também pelo crivo duvidoso do 1º Sargento, este bem (mal) acolitado, e ainda pelas contas apertadas do furriel vagomestre! Este, sabendo bem que muita coisa ficava no peneiro, fazia contas e mais contas com o incansável Castro, algumas vezes com discussões bravias pelo meio, na tentativa de não haver por ali um levantamento de rancho! E se houvesse e fosse bem sucedido, a coisa ficaria muito negra, até mesmo para o Comando, tanto quanto sei!
Não houve levantamento, mas houve uma ameaça por parte do soldado Pacheco, que em Matosinhos fazia pela vida, como pescador! Vai daí, garantiu que o peixe colocado na mesa estava impróprio para consumo, para não dizer estragado! E quem é que o conseguia parar?! Nem o Castro, nem o vagomestre e nem sequer o capitão de operações! E agora como vai ser com o Pacheco a jurar pela mulher e filha, que ou mudam o prato ou a coisa vai estoirar?!«Isto não é comida que se dê a ninguém, e muito menos a homens com mais de oito horas de picadas!», esbracejava vermelho de raiva à porta da secretaria, enumerando as mordomias dos sargentos e oficiais, principalmente dos que passavam o dia com o traseiro na cadeira e olhavam com desdém para os que davam o cabedal ao manifesto! E gritando outras coisas incómodas para os ouvidos de alguns sargentos, que sem esboçarem qualquer gesto viam a carapuça enterrar-se-lhe até ao pescoço!A uma distância de 39 anos e dito antes do 25 de Abril, a coisa era fogo!! E até mais que motivo para férias nos calabouços de Luanda!
“Mas afinal, há levantamento de rancho ou não há?!, e o furriel vagomestre como fica no meio de tudo isto?!”, era a pergunta e a preocupação que ficavam!Valeu a interferência do comandante, que em boa hora, para todos, chamou o Pacheco ao gabinete. Demoraram as “negociações”, mas saiu fumo branco! Fumo branco e troca do peixe por outro prato que satisfez o revoltoso e seus “muchachos”, e que serviu também para abrir a pestana do Comando!
A cena voltaria a repetir-se, noutra Companhia do Batalhão, e que terminou com a prisão do meu amigo e conterrâneo Jorge, principal instigador e prontamente apoiado, mas mais tarde abandonado pelos colegas quando chegou a hora da verdade! Não sabiam rigorosamente de nada!!!...«Bando de cobardes e traidores, se o são aqui também o serão na mata!», gritou o Jorge quando foi levado para a cela da Companhia!O Pacheco, sempre tão reivindicativo como cumpridor, curiosamente, ou talvez não, viria a ser alvo da rigorosa disciplina militar, já noutras paragens! Quando o mar se preparava para levar definitivamente um nosso colega, o Pacheco, exímio nadador e portador de barbatanas que usava na pesca, foi acordado na sua folga, saltou o arame farpado a escassos metros da água e salvou o amigo já quase inanimado! Foi um acto de heroicidade de que hoje ainda se fala e que se pensava valer-lhe um louvor! Ao contrário, não só não foi louvado, como ainda lhe valeu ficar sob alçada disciplinar! Sob alçada disciplinar porque, tal como dizia a participação do capitão, “por se ter ausentado do quartel, sem autorização e transpondo o arame farpado em detrimento da porta d’armas, e em trajes menores …”!
Assim, melhor fora que tivesse saído pela porta d’armas…em cuecas! E ainda hoje, amigos que ficaram para toda a vida e que anualmente se sentam à mesma mesa, se riem do caricato da participação! Riem… agora!
E assim, também, se ia cumprindo a nossa missão por terras de Angola!
ANTÓNIO CASAL FONSECA