O furriel Viegas em Nova Lisboa, nas férias de Abril de 1975. Em cima,
com a madrinha Isolina e duas netas dela: a Fátima e a Idalina. Em
baixo, em pose no biciclo de outro neto de Isolina, o Valter
A 12 de Abril de 1975, fazem-se hoje 37 anos, vadiava eu por Nova Lisboa (Huambo), na companhia do inseparável Cruz, anfitrionados na casa de Cecília Neves (já então Polido, de sobrenome matrimonial). E ambos tratados como príncipes.
Se olharem bem para as fotos, poderão imaginar como, hoje, eu mesmo sentirei saudades da verdura desses 22 aninhos e meio, que era a minha idade dessa data abrilina. Eram outros tempos, outra agilidade física e outra disponibilidade mental, preparadíssimo para o que desse e viesse, fosse o que fosse. Eram também menos 10 quilitos, menos volume abdominal, mais cabelo e mais sonhos e aspirações de vida. É que, não é nada, não é nada..., mas já lá vão 37 anos!
Ao tempo, foi mimoseado com correio do Portugal europeu - que previamente previra receber lá, por andar a correr Angola e de lá dando a competente direcção: à família, a amigos, a gente próxima.
«Tens correio, como é possível?...», indagou-me a Cecília, intrigada e com uma mão cheia de cartas e aerogramas em meu nome, quando mo entregou, ela que nas vésperas nem imaginaria que por lá estivesse eu. Na verdade, por lá aparecera de surpresa - como eu bem gostava!
Hoje, 37 anos depois e fazendo memória desse tempo, releio uma carta muito especial, de Z., escrita cinco dias antes, dando-me conta de um drama familiar que a afectava e a que queria pôr fim.
«Os meus pais, depois de 22 anos de casados, vão separar-se. Eles nunca se entenderam às mil maravilhas, mas há uns tempos para cá a coisa andava mesmo feia...», contava-me a jovem professora primária, recordando que, com mais três irmãos, «fui crescendo e cada ano mais revoltada, a ponto de desejar ardentemente acabar o curso para tirar a minha mãe e meus irmãos daquele ambiente» - de abusos, de embriaguês e maus tratos, que também passavam por agressões físicas.
Dei comigo, à noite e caminhando no passeio da Avenida da República, onde ficava o Hotel Bimbe, a pensar nos dramas que quantas vezes os sorrisos escondem, nas tragédias que as telhas e as paredes tantas vezes encobrem e a interrogar-me sobre a dor de Z., ao tempo no seu primeiro ano de professora e que, por razões que ao caso não vem, levedava no meu horizonte emocional. «Ele anda furioso, porque vê que o «poder» está a acabar e que nós, como já não precisamos dele, o abandonamos e ameaça-nos a todo o momento, já nem sequer autoriza que eu vá passar os fins de semana a casa», narrou-me Z., cujo rosto mentalmente revejo, adivinhando-o amargurado e infeliz, nesse tempo de há 37 anos!
Passeando na avenida, fui achado por conterrânea e familiar minha, a Ondina, inesperadamente, eu nem sabia que estava por Nova Lisboa. «Estás estranho, muito estranho...», disse-me ela, depois de alguma conversa. «É mulher na costa!!!...». E sorriu-se, a tagarelar sugestões e a querer saber de mim.
Ondina, alguns anos mais velha que eu, desinibida e avançada para os costumes da época (e ainda mais para os meus...), fez questão de explorar a minha emoção e tristeza. «Conta lá...». E deu-me o braço, a caminho do Danúbio Azul, bar nocturno então muito em moda na capital huambana.
Lá lhe contei: «É uma amiga, o pai isto e o pai aquilo...», disse eu, não lhe escondendo amargura e inquietação pessoais. Acrescentei-lhe, citando a carta: «Ameaça pô-la na rua e muitas mais coisas, a miúda anda desesperada de todo, perdeu a confiança nas pessoas». E que ao outro dia fazia anos (a carta era de 7 de Abril de 1975), dia que, citando-a, seria «o dia mais triste da toda a minha vida».
«Isso incomoda-te, preocupa-te!!! É tua namorada?...», perguntou-me Ondina, sorrindo-me, a provocar-me mas de olhar entristecido, com a mão sobre o meu ombro, depois abraçando-me, fazendo-se confidente. Que não, «não é nada minha namorada», respondi-lhe. «É uma miúda amiga, amiga da minha prima...».
A vida tem destas coisas e nessa noite de 12 de Abril de 1975, de férias no Huambo, feliz (por mim) e sentindo-me no colo de familiares e amigos, dei-me conta de quanto é paradoxal a vida. Eu por lá, na jornada africana que poderia ser (e muitas vezes foi) de sangue e de lutos, ao momento desfrutando os prazeres da boa-vai-ela que me levou a Nova Lisboa. Por cá, ela, a Z., dizendo-se «uma moça exteriormente sem problemas de qualquer espécie», mas contando-me o seu drama pessoal: «Sou uma infeliz. Tão nova e já com tantos problemas, sinto-me desiludida».
Deitei-me a pensar nas contradições da vida. A guerra, na qual eu jornadeava dias de operações na mata semeada de sustos, perigos e medos; a guerra que enlutava almas e famílias não era, afinal, tão trágica quanto o drama de uma jovem professora que via a família a desfazer-se, entre ameaças, maus tratos, agressões e ofensas.
«Espero que me ajudes e me animes (...), tenho a certeza que posso confiar e esperar um apoio moral...», desabafava Z., interrogando-me: «Estás a ver a situação em que me encontro?».
Apoio, tê-lo-ei dado, seguramente. Ao outro dia, aprontei-lhe palavras de farto conforto e incentivante ânimo, tanto quando soube e fui capaz, em carta escrita de Nova Lisboa, com o melhor de mim para a amiga que sofria o drama do despedaço familiar. Senti-me obrigado e expectante, intranquilo. E continuadamente intrigado com as contradições da vida, com as várias cores e emoções das diversas guerras das nossas vidas. A pensar na dor de Z., ma alma que se lhe vestia de luto!
- FOTO 1. O furriel Viegas e familiares «Tens correio, como é possível?...», indagou-me a Cecília, intrigada e com uma mão cheia de cartas e aerogramas em meu nome, quando mo entregou, ela que nas vésperas nem imaginaria que por lá estivesse eu. Na verdade, por lá aparecera de surpresa - como eu bem gostava!
Hoje, 37 anos depois e fazendo memória desse tempo, releio uma carta muito especial, de Z., escrita cinco dias antes, dando-me conta de um drama familiar que a afectava e a que queria pôr fim.
«Os meus pais, depois de 22 anos de casados, vão separar-se. Eles nunca se entenderam às mil maravilhas, mas há uns tempos para cá a coisa andava mesmo feia...», contava-me a jovem professora primária, recordando que, com mais três irmãos, «fui crescendo e cada ano mais revoltada, a ponto de desejar ardentemente acabar o curso para tirar a minha mãe e meus irmãos daquele ambiente» - de abusos, de embriaguês e maus tratos, que também passavam por agressões físicas.
Dei comigo, à noite e caminhando no passeio da Avenida da República, onde ficava o Hotel Bimbe, a pensar nos dramas que quantas vezes os sorrisos escondem, nas tragédias que as telhas e as paredes tantas vezes encobrem e a interrogar-me sobre a dor de Z., ao tempo no seu primeiro ano de professora e que, por razões que ao caso não vem, levedava no meu horizonte emocional. «Ele anda furioso, porque vê que o «poder» está a acabar e que nós, como já não precisamos dele, o abandonamos e ameaça-nos a todo o momento, já nem sequer autoriza que eu vá passar os fins de semana a casa», narrou-me Z., cujo rosto mentalmente revejo, adivinhando-o amargurado e infeliz, nesse tempo de há 37 anos!
Passeando na avenida, fui achado por conterrânea e familiar minha, a Ondina, inesperadamente, eu nem sabia que estava por Nova Lisboa. «Estás estranho, muito estranho...», disse-me ela, depois de alguma conversa. «É mulher na costa!!!...». E sorriu-se, a tagarelar sugestões e a querer saber de mim.
Ondina, alguns anos mais velha que eu, desinibida e avançada para os costumes da época (e ainda mais para os meus...), fez questão de explorar a minha emoção e tristeza. «Conta lá...». E deu-me o braço, a caminho do Danúbio Azul, bar nocturno então muito em moda na capital huambana.
Lá lhe contei: «É uma amiga, o pai isto e o pai aquilo...», disse eu, não lhe escondendo amargura e inquietação pessoais. Acrescentei-lhe, citando a carta: «Ameaça pô-la na rua e muitas mais coisas, a miúda anda desesperada de todo, perdeu a confiança nas pessoas». E que ao outro dia fazia anos (a carta era de 7 de Abril de 1975), dia que, citando-a, seria «o dia mais triste da toda a minha vida».
«Isso incomoda-te, preocupa-te!!! É tua namorada?...», perguntou-me Ondina, sorrindo-me, a provocar-me mas de olhar entristecido, com a mão sobre o meu ombro, depois abraçando-me, fazendo-se confidente. Que não, «não é nada minha namorada», respondi-lhe. «É uma miúda amiga, amiga da minha prima...».
A vida tem destas coisas e nessa noite de 12 de Abril de 1975, de férias no Huambo, feliz (por mim) e sentindo-me no colo de familiares e amigos, dei-me conta de quanto é paradoxal a vida. Eu por lá, na jornada africana que poderia ser (e muitas vezes foi) de sangue e de lutos, ao momento desfrutando os prazeres da boa-vai-ela que me levou a Nova Lisboa. Por cá, ela, a Z., dizendo-se «uma moça exteriormente sem problemas de qualquer espécie», mas contando-me o seu drama pessoal: «Sou uma infeliz. Tão nova e já com tantos problemas, sinto-me desiludida».
Deitei-me a pensar nas contradições da vida. A guerra, na qual eu jornadeava dias de operações na mata semeada de sustos, perigos e medos; a guerra que enlutava almas e famílias não era, afinal, tão trágica quanto o drama de uma jovem professora que via a família a desfazer-se, entre ameaças, maus tratos, agressões e ofensas.
«Espero que me ajudes e me animes (...), tenho a certeza que posso confiar e esperar um apoio moral...», desabafava Z., interrogando-me: «Estás a ver a situação em que me encontro?».
Apoio, tê-lo-ei dado, seguramente. Ao outro dia, aprontei-lhe palavras de farto conforto e incentivante ânimo, tanto quando soube e fui capaz, em carta escrita de Nova Lisboa, com o melhor de mim para a amiga que sofria o drama do despedaço familiar. Senti-me obrigado e expectante, intranquilo. E continuadamente intrigado com as contradições da vida, com as várias cores e emoções das diversas guerras das nossas vidas. A pensar na dor de Z., ma alma que se lhe vestia de luto!
em Nova Lisboa.
- FOTO 2. A imagem tem exactamente 37
anos, é de 12 de Abril de 1975. Legenda, nas
costas, escrita pelo meu punho: «Nova Lisboa e
eu de biciclo, isto não é guerra nem é nada.
É o paraíso!».
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